APOCALIPSE 20: UMA RESPOSTA AO PRÉ-MILENISMO
Há realmente bastante coisa no ensaio de Ladd com que concordo. [01] Concordo com ele que o Antigo Testamento deve ser interpretado na luz do Novo e que não se justifica uma interpretação total e exclusivamente literal da profecia do Antigo Testamento como Israel espiritual e que o princípio dispensacionalista básico de uma distinção absoluta entre Israel e a igreja, envolvendo dois propósitos de Deus distintos e dois povos de Deus distintos, não tem apoio bíblico. Concordo de todo o coração com o que é dito do reino espiritual de Cristo hoje e a realidade presente do reino de Deus.
Nossa divergência básica é acerca da interpretação de Apocalipse 20:1-6. Agradou-me ver Ladd admitir que este é o único lugar na Bíblia que fala de um milênio (p. 31). Nisto, também, estamos de acordo. Mas, a questão realmente importante é: Qual o significado desta passagem?
Olhando o problema primeiramente de uma perspectiva ampla, Ladd e eu discordamos acerca da relação de Apocalipse 20:1-6 com 19:11-16. A posição de Ladd é: “Os acontecimentos de Apocalipse 20 seguem-se à visão da Segunda Vinda de Cristo, que é retratada em 19:11-16” (p. 31). Concordo que Apocalipse 19:11-16 descreve a Segunda Vinda de Cristo. Mas não concordo que o que é descrito no capítulo 20 segue-se necessariamente de forma cronológica ao que é descrito no capítulo 19, da mesma forma que o que é descrito no capítulo 12 (o nascimento do filho varão) ao que é descrito nos últimos versos do capítulo 11 (o julgamento dos mortos e a entrega de recompensas aos santos). Os motivos porque creio que Apocalipse 20:1 leva-nos novamente ao princípio da era do Novo Testamento estão no meu ensaio, páginas 142 a 145.
Concentrando-me em Apocalipse 20:1-6, devo admitir que a interpretação de Ladd destes versos faz sentido e é coerente com a interpretação que ele adotou ao relacionamento entre os capítulos 19 e 20. Não tenho dificuldades em reconhecer sua exegese desta passagem como uma opção válida para os evangélicos, e gosto da maneira cuidadosa e lúcida, própria de um estudioso, em que ele expõe seus pontos de vista.
Mas discordamos, realmente, em nossa interpretação desta passagem. Confio, porém, que ele e os outros que partilham de seus pontos de vista estejam prontos a reconhecer que minha interpretação não vem de uma abordagem liberal da escritura nem de um arrogante abandono do texto, mas de um modo diferente de entender as palavras que estão diante de nós.
Discordo quanto aos seguintes quatro assuntos: Primeiramente, Ladd não nos diz muita coisa do acorrentamento de Satanás descrito nos versos 1 a 3. Ele não diz exatamente o que pensa significar o acorrentamento nem mostra com precisão o que entende por “não mais engane as nações”. Ele não relaciona o acorrentamento de Satanás mencionado aqui com as passagens nos Evangelhos que falam de tal acorrentamento como tendo começado já no tempo da primeira vinda de Cristo (veja as p. 146 a 149 de meu ensaio). Tentei mostrar que é possível entender-se o acorrentamento de Satanás em Apocalipse 20:1-3 como significando que Satanás não pode impedir a propagação do Evangelho durante a presente era, não pode reunir os inimigos de Cristo para atacar a igreja, e que esse acorrentamento acontece durante toda a era da igreja do Novo Testamento (veja ps. 146 a 149).
Em segundo lugar, Ladd traduz a palavra grega ezesan, em ambas as suas ocorrências nesta passagem, por “tornaram à vida” (p. 33). Esta é, confirmo, uma tradução possível. Outra tradução igualmente possível, porém, é como faz a American Standard Version (Nota do tradutor: assim como as versões mais utilizadas em português): “viveram”.
Em terceiro lugar, Ladd interpreta ezesan em ambos os casos como ressurreição física. Concordo com ele que a palavra precisa ter o mesmo significado as duas vezes que é utilizada, e que é uma exegese irresponsável dar um significado à primeira ocorrência da palavra e outro à segunda. Porém, entendo a palavra como é utilizada aqui com o significado não de regeneração, mas transição da morte física para a vida com Cristo no Céu durante o período entre a morte e a ressurreição (p. 155). Os crentes falecidos tomam parte nessa vida, mas os incrédulos não (ps. 152 a 155).
Ladd entende ezesan nos versos 4 e 5 como o significado de ressurreição física em ambos os casos. Para apoiar essa interpretação ele indica duas outras passagens no livro de Apocalipse onde ezesan tem este significado: 2:8 e 13:14. Concordo com ele sobre 2:8, mas não 13:14. A segunda passagem fala da besta, “que recebera a ferida da espada e vivia”. Ladd comenta que a ferida foi “ferida mortal”, ou ferida que levou à morte, e que “vivia” aqui, portanto, significa ressurreto dentre os mortos (p. 35). Mas o verso 3, a que se refere, não diz que a besta morreu, mas que uma de suas cabeças foi “como ferida de morte, e a sua chaga mortal foi curada”. A palavra grega hõs usada aqui diz-nos que a besta não foi morta, mas apenas pareceu ter sido morta. Por esta razão creio que “vive”, no verso 14, não pode significar ressurreição física.
Há, no entanto, outros usos do verbo zao (de onde vem ezesan) no livro de Apocalipse que não tem o significado de ressurreição física. Em 7:2 e 15:7, por exemplo, a palavra é usada para descrever o fato que Deus vive para sempre; em 3:1 é usada para descrever o que poderíamos chamar de uma vida espiritual: “tens nome de que vives, e estás morto”. A referência a outros usos do verbo zao, portanto, não pode ter força decisiva neste assunto.
Eu prefiro fazer alusão ao paralelo de Apocalipse 20:4,5 e que encontramos no capítulo 6:9-11. Aqui, João viu “as almas dos que foram mortos por amor da palavra de Deus e por amor do testemunho que deram” (veja a semelhança na linguagem, com 20:4: “as almas daqueles que foram degolados pelo testemunho de Jesus, e pela palavra de Deus”). Essas almas de mártires falecidos estão aparentemente conscientes e podem se comunicar; são-lhes dadas vestiduras brancas e lhes dizem que repousem. As vestiduras brancas e o descanso sugerem que eles estão gozando um tipo de bênção provisória, que aponta para o eschaton final. Esta é exatamente a situação das almas descritas do capítulo 20, que diz-se que reinam com Cristo enquanto esperam a ressurreição do corpo, que ainda não ocorreu (veja 20: 11-13). Apesar da palavra “viveram” (ezesan) não ser usada em 6:9-11, a situação descrita nestes versos é paralela à situação descrita em 20:4.
Minha interpretação do significado de ezesan, portanto, não está em desarmonia com o restante do livro de Apocalipse. Também não está em desarmonia com o restante do capítulo 20, que prediz a ressurreição do corpo e o julgamento final no fim do capitulo, após a descrição do reinado de mil anos. Apesar dos pré-milenistas costumarem entender a ressurreição descrita nos versos 11-15 como ressurreição dos incrédulos mortos apenas, não há indicação nestes versos que a ressurreição mostrada aqui limita-se a eles. Na verdade, o verso 15 diz: “E aquele que não foi achado escrito no livro da vida foi lançado no lago de fogo”. Mas há alguma indicação de que nenhum dos que diz-se aqui foram ressuscitados dos mortos foi achado inscrito no livro da vida?
Em quarto lugar, concordo que o governo de Cristo agora é praticamente invisível (embora não inteiramente) e que esperamos a expressão visível total desse governo após o retorno de Cristo. Mas porque limitar essa expressão visível a um período de mil anos? Por que essa expressão visível do governo de Cristo precisa ainda acontecer, como Ladd diz na página 37, na História (quer dizer, “no mundo como nós o conhecemos”)? Por que, por exemplo, os crentes precisam ser ressuscitados para viver num mundo que ainda não foi glorificado e ainda geme por causa da presença do pecado, rebelião e morte (veja 8:19-22)? Por que o Cristo glorificado precisaria voltar à terra para governar sobre seus inimigos com vara de ferro e assim ter de suportar ainda oposição à sua soberania? Esta fase de sua obra não ficou completa durante seu estado de humilhação? Não está Cristo voltando na plenitude de sua glória para introduzir, não um período intermediário de paz e bênçãos limitadas, mas o estado final da perfeição ilimitada?
* Resposta do amilenista Anthony A. Hoekema ao ensaio do pré-milenista histórico George Eldon Ladd no livro: CLOUSE, Robert G. Milênio: significado e interpretações. Campinas, SP: Luz para o Caminho, pp. 50-54.