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Hebreus 6 ensina que um crente verdadeiramente salvo pode perder sua salvação?*



Um dos equívocos mais comuns relacionados ao propósito deste documento é imaginá-lo como uma advertência contra a possibilidade real de apostasia. Alguns trechos recortados de seus contextos podem sugerir isso (cf. Hb 2.1-4; 3.12; 6.4-8; 10.26-31), mas o teor geral da carta aponta para outro objetivo: demonstrar a superioridade da fé cristã em relação ao sistema judaico. Por melhor que fosse o judaísmo, não passava de uma sombra do que é real em Cristo (9.23 – 10.18). Como observa Hale:


Jesus é superior, em todos os aspectos, àquilo sobre o que o judaísmo foi construído: as revelações através dos pais e dos anjos (1.1 – 2.18), Moisés (3.1 – 4.13), Arão (4.14 – 7.28), o sistema sacrificial (8.1 – 10.18). O autor não condena estes elementos como sendo maus, nem fala acerca deles de maneira depreciadora; mostra, sim, que eles foram substituídos. Eles foram úteis, mas agora serviram para sua finalidade e devem ser abandonados, desde que Jesus veio (1.2; 3.3; 8.12; 10.14).[1]


O autor pretendia exortar seus leitores à maturidade cristã, mostrando que


é necessário o cristão encontrar todas as suas necessidades e recursos em Jesus Cristo, o único capaz de prover tudo o que é mister para esta vida e a do porvir. É tempo de o cristão judeu afastar-se completamente do ritualismo e simbolismo do judaísmo e entrar na realidade da promessa de Deus: Jesus Cristo.[2]


Com isso em mente, as passagens que aparentemente endossam a possibilidade de apostasia devem ser reinterpretadas,[3] inclusive, porque ao contrário do que muitos pensam, a carta aos Hebreus possui afirmações categóricas em defesa da segurança eterna da salvação.


No mesmo capítulo 6 – usado por muitos para apoiar a ideia de apostasia – encontra-se uma das mais vigorosas afirmações da doutrina em todo o Novo Testamento:


Pois quando Deus fez a promessa a Abraão, visto que não tinha ninguém superior por quem jurar, jurou por si mesmo [...]. Pois os homens juram pelos que lhes é superior, e o juramento, servindo de garantia, para eles, é o fim de toda contenda. Por isso Deus, quando quis mostrar mais firmemente aos herdeiros da promessa a imutabilidade do seu propósito, se interpôs com juramento, para que mediante duas coisas imutáveis, nas quais é impossível que Deus minta, forte alento tenhamos nós que já corremos para o refúgio, a fim de lançar mão da esperança proposta; a qual temos por âncora da alma, segura e firme e que penetra além do véu, onde Jesus, como precursor, entrou por nós, tendo-se tornado sumo sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedeque (Hb 6.13, 16-20).


O autor de Hebreus apresenta a segurança da salvação de três maneiras.[4] A primeira é através do juramento feito por Deus. Era bastante comum nos tempos bíblicos a pessoa fazer um juramento sobre algo ou alguém superior a si mesma, a fim de dar credibilidade à sua palavra. Apelavam ao altar do templo, ao sumo sacerdote ou ao próprio Deus como testemunhas. “Uma vez feito tal juramento, a discussão estava encerrada. Acreditava-se que, se estivesse disposto a fazer tal juramento tão sério, o indivíduo estava plenamente decidido a cumpri-lo”.[5]


É claro que Deus não precisaria fazer tal juramento. Com juramento ou não, sua palavra é digna de toda confiança, pois Ele é fiel. Contudo, devido à fraqueza da fé dos homens, “Deus fez de sua promessa um juramento de prover esperança futura para seus filhos”.[6] Não havendo alguém superior sobre quem jurar, jurou por si mesmo (v. 13) para que tenhamos “forte alento” (v. 18).[7] Embora o juramento não tenha tornado Sua promessa mais segura, Ele por consideração a nós, assegurou que não voltaria atrás no que disse.


A segunda é através da referência aos crentes como “nós que já corremos para o refúgio”. O autor tinha em mente as cidades de refúgio do Antigo Testamento que foram providenciadas por Deus para aqueles que buscavam proteção dos vingadores de um assassinato acidental (Nm 35.9-34; Dt 19.1-13; Js 20.1-9). A Septuaginta emprega o mesmo termo grego que o autor de Hebreus nessas passagens.[8] As pessoas que buscavam refúgio naquelas cidades estavam finalmente seguras. O pecador pode correr ao refúgio abraçando a “esperança proposta” (v. 18), a saber, Cristo e o Seu evangelho!


Essa esperança é a “âncora da alma”. Essa é a terceira maneira usada pelo autor de Hebreus para enfatizar a segurança eterna dos salvos. Guthrie explica a figura de linguagem usada pelo autor: “O serviço da âncora é permanecer fixa no fundo do mar sejam quais forem as condições marítimas. De fato, quanto mais violento o tempo, tanto mais importante é a âncora para a segurança e a estabilidade do barco”.[9]


MacArthur elucida seu significado:


Como nosso Sumo Sacerdote, Jesus serve como âncora de nossa alma, que nos impede para sempre de nos afastarmos de Deus. Como cristão, seu relacionamento com Cristo o ancora a Deus. Você pode estar cero disso porque essa âncora está ‘por trás do véu’ (v. 19). O lugar mais sagrado no templo judeu era o santo dos Santos, que tinha um véu que o separava do restante do templo. Dentro do Santo dos Santos ficava a arca da aliança, que significava a glória de Deus. Somente uma vez por ano, no Dia da Expiação, o sumo sacerdote de Israel podia passar pelo véu e fazer a expiação (o pagamento ou a ação para se fazer justiça) pelos pecados de seu povo. Mas, sob a nova aliança, Cristo fez a expiação de uma vez por todas e por todas as pessoas por meio de seu sacrifício na cruz. Na mente de Deus, a alma do cristão já está guardada por trás do véu – o seu santuário eterno.


Uma vez dentro do Santo dos Santos celestial, Jesus não saiu, como faziam os sumo sacerdotes judeus. Em vez disso, ‘ele se assentou à direita da Majestade nas alturas’ (Hb 1.3). E Jesus permanece ali para sempre como guardião de nossas almas. Esta plena segurança é quase incompreensível. Nossa alma não somente está ancorada dentro do santuário impenetrável, inviolável e celestial, mas nosso Salvador, o Senhor Jesus, também as guarda![10]


Mas essa não é única passagem da carta onde se lê a respeito da segurança eterna dos salvos. Outros trechos endossam a doutrina. No capítulo seguinte, lê-se:


Ora, aqueles são feitos sacerdotes em maior número, porque são impedidos pela morte de continuar; este, no entanto, porque continua para sempre, tem o seu sacerdócio imutável. Por isso, também pode salvar totalmente os que por ele se chegam a Deus, vivendo sempre para interceder por eles (Hb 7.23-25).


Como o cargo sacerdotal de Jesus não foi temporário, mas é perpétuo, ele pode “salvar totalmente os que por ele se chegam a Deus” (v. 25). A expressão grega traduzida por “totalmente” (eis tó pantelés) deve ser entendida em sentido temporal devido aos paralelos nos papiros: “para todo o tempo”.[11] A intenção do autor é demonstrar que enquanto o Sumo Sacerdote estiver vivo para interceder por seu povo, este encontra-se salvo e seguro. Hoekema explica em que consiste a intercessão de Cristo:


A palavra usada, entynchano, significa ‘peticionar por alguém’. Essa intercessão é um aspecto da obra de Jesus como sacerdote. Havendo feito seu sacrifício perfeito na cruz quando estava na terra, e havendo ascendido aos céus, Cristo agora continua intercedendo por seu povo baseado no seu sacrifício (ver Rm 8.34). O que está incluído na intercessão de Cristo? Ele peticiona (ou roga) diante do Pai que os pecados do seu povo sejam perdoados (Jo 17.17), que o trabalho que realizam para Deus seja aceito pelo Pai (1 Pe 2.5), e que, finalmente, estejam com ele eternamente para que possam ver sua glória (Jo 17.24).[12]


Somos certificados pela oração eficaz de Jesus que nenhum integrante do Seu povo perecerá. Afinal, foi o próprio Jesus quem disse: “Pai, graças te dou porque me ouviste. Aliás, eu sabia que sempre me ouves” (Jo 11.41b-42a).


Mas é especialmente interessante como em cada excerto da epístola usado em defesa da possibilidade de apostasia, logo em seguida, o autor faz uma afirmação da segurança eterna da salvação. É como se ele percebesse que suas palavras pudessem ser mal interpretadas e, por isso, dissesse: “Calma! Eu explicarei melhor”.


À semelhança do capítulo 6, o capítulo 10 também é bastante explorado a fim de afirmar que o verdadeiro salvo pode cair da graça e se perder finalmente. Os versículos 26-31 e 38 parecem sugerir tal possibilidade. Este último diz: “todavia, o meu justo viverá pela fé; se retroceder, nele não se compraz minha alma” (v. 38). Mas basta prosseguir a leitura para encontrar no versículo seguinte a afirmação: “Nós, porém, não somos dos que retrocedem para a perdição; somos, entretanto, da fé, para a conservação da alma” (v. 39).


A fim de desfazer qualquer mal-entendido, o autor esclarece que os verdadeiros crentes – grupo no qual se inclui – não são dos que retrocedem, mas dos que perseveram até o fim, sendo preservados do juízo escatológico.[13] Aliás, ele já havia dito no versículo 14 que todos os que estão sendo presentemente santificados, já foram aperfeiçoados para sempre. O verbo τετελείωκεν (teteleíōken) considera a ação como já sendo completa.


Por fim, no último capítulo, o autor faz uma citação do Antigo Testamento – baseada em diversos textos (Gn 28.15; Dt 31.6, 8; Js 1.5) –, cujo propósito era encorajar seus leitores: “Contentai-vos com as coisas que tendes; porque ele tem dito: “De maneira alguma te deixarei, nunca jamais te abandonarei” (Hb 13.5). Que promessa confortadora!




* TITILLO, Thiago Velozo. Jamais Perecerão: uma análise teológica, histórica e exegética da segurança eterna dos salvos. Rio de Janeiro: Verbum Publicações, 2017, pp. 74-78.



[1] Ibid., p. 354.


[2] Ibid. Calvino diz adequadamente: “Como teria sido uma tarefa supérflua para o apóstolo provar aos que já estavam convencidos de que aquele que havia aparecido era o Cristo, assim fazia-se necessário que ele provasse o que Cristo era, porquanto não haviam ainda entendido claramente o fim, os efeitos e as vantagens de sua vinda; senão que, sendo dominados por um falso conceito acerca da lei, apegaram-se à sombra em vez de tomarem posse da substância” (CALVINO, João. Hebreus. 1. ed. São Paulo: Paracletos, 1997, p. 23).


[3] Tais passagens serão abordadas no capítulo 8.


[4] Estou seguindo a excelente interpretação da passagem proposta pelo teólogo calvinista John MacArthur em: Salvo sem sombra de dúvida: como ter certeza de sua salvação. Brasília, DF: Palavra, 2011, pp. 23-24.


[5] Ibid., p. 23.


[6] Ibid.


[7] MacArthur observa que a expressão grega “refere-se a uma grade fonte de consolo e confiança” (ibid.). Em seu texto consta “firmemente encorajados” em vez de “forte alento”.


[8] Ibid.


[9] GUTHRIE, Donald. Hebreus. Introdução e comentário. 1. ed. São Paulo: Vida Nova, 1984, p. 144.


[10] MACARTHUR, 2011, p. 24.


[11] GUTHRIE, op. cit., p. 157. Hoekema cita um papiro do século III que relata a venda de uma propriedade: “apo tou nyn eis to panteles (‘desde agora e para sempre’)” (HOEKEMA, op. cit., p. 233).


[12] Ibid.


[13] Na verdade, o texto grego não traz nenhuma palavra referente ao “justo” quando levanta a hipótese do retrocesso. Diz: καὶ ἐὰν ὑποστείληται (kaí eán huposteílētai – “e se retroceder”), e não “se ele [o justo] retroceder”, nem “se o justo retroceder”. Na língua original, o autor poderia ter em mente “ele” (o justo) ou “alguém” (o que retrocedeu), sem ser o justo. Muitos adeptos da segurança eterna da salvação preferem interpretar da segunda maneira: “o meu justo viverá pela fé; se alguém retroceder, nele não se compraz minha alma. Nós, porém, não somos dos que retrocedem para a perdição; somos, entretanto, da fé, para a conservação da alma”. Desta forma, o autor estaria fazendo uma visível distinção entre o justo, que persevera na fé, e os demais, que retrocedem para a perdição. Todavia, tal leitura não soa natural. Em se tratando do justo, ele retrocederia da fé para a descrença. Mas se o autor não tivesse o justo em vista, qual seria o retrocesso? De que ponto este alguém retrocederia? O raciocínio do autor parece favorecer a ideia de que ele pensava no justo quando levantou sua conjectura. Mas isso não traz qualquer prejuízo à doutrina. O escritor apenas levanta a hipótese do justo retroceder de sua vida de fé para, logo em seguida, mostrar a característica da verdadeira fé. Trata-se apenas de uma hipótese. Imediatamente depois, ele afirma que o crente (justo) não retrocede, mas persevera na fé. O justo pode retroceder, mas jamais optará por isso.

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