O Jesus genérico da Estação Primeira de Mangueira: uma resposta ao artigo do Padre Gegê
Ontem eu li um artigo publicado por uma amiga no facebook, de autoria do padre Geraldo Natalino (conhecido como padre Gegê). Pensei em respondê-la nos comentários, mas achei que não seria conveniente por dois motivos: primeiramente, poderia gerar algum mal-estar; em segundo lugar, um texto de maior amplitude pode ter um alcance maior. E é com essa intenção que busco responder ao artigo do padre acima mencionado. O artigo é datado de agosto de 2019, ocasião em que foi escolhido o samba da Mangueira. E arrisco-me a dizer que a Mangueira já ganhou o Carnaval 2020! Não há necessidade de qualquer tema criativo; basta colocar na avenida o que está na boca do povo. No ano passado, a agremiação ganhou a disputa ao homenagear a vereadora Marielle Franco, assassinada por milicianos em 14 de março de 2018. Pouco importou o fato de a festa ser organizada pela contravenção carioca que tem justamente nas milícias seu principal aparelho. Coerência? A gente não vê por aqui... Este ano, a escola de samba traz uma personagem que move o coração de milhões. E, embora a escolha do samba-enredo tenha se dado antes do Natal, a Estação Primeira já pôde perceber que o ibope é certo: basta ver a promoção que o ataque blasfemo à bendita pessoa de Jesus de Nazaré – em um “especial de Natal” – rendeu a um grupo medíocre de produtores, grupo tão medíocre que não tem condições de usar a porta da frente com a cabeça erguida. Mas, claro, não se pode ser tão ingênuo: outros vídeos satirizando a fé cristã já tinham sido publicados pela mesma produtora em tempos anteriores, causando o mesmo alvoroço e sentimento ambíguo: a indignação de uns e a euforia de outros. Ou seja, é o tema certo para “lacrar”! Mais uma vez a pessoa de Cristo será satirizada, escrachada e blasfemada publicamente, sob os pretextos mais “piedosos” e a bênção dos críticos sociais. O texto do padre Gegê mostra as credenciais teológicas liberais e progressistas do autor ao endossar a absorção da pessoas histórica de Jesus de Nazaré em uma ideia: uma ideia compartilhada por qualquer credo religioso. Ao fazer isso, o samba-enredo destrói o legado dos ensinamentos de Jesus e o reconstrói ao gosto de todos. Isso é uma forma de sincretismo inclusivista. Mas isso não pode ser feito sem sacrificar os ensinamentos do próprio homenageado: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai senão por mim” (Jo 14.6). Nenhuma afirmação pode ser mais exclusivista do que esta. Se Jesus afirmou ser o único caminho, Ele naturalmente excluiu qualquer outro. Cristo não pode ser “o único” e “um entre muitos” ao mesmo tempo. Não, o caminho de Cristo não é o mesmo oferecido nos cultos afros, rituais indígenas e ideias feministas. Por isso, é evidente que Jesus não “tem rosto negro, sangue índio, corpo de mulher”, tampouco é “moleque pilintra no buraco quente”, embora tenha morrido por todos estes. Jesus é, na verdade, “o Filho do Deus vivo” (Mt 16.16), que “se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1.14) – diga-se de passagem, em corpo masculino – a fim de receber a punição pelos nossos pecados, reconduzindo-nos de volta para Deus (Is 53.5). Jesus está longe de ser essa ideia que agrada a todos os gostos no cardápio relativista da sociedade pós-moderna. Sua mensagem, pelo contrário, é ofensiva e reduz o homem ao seu estado de miséria devido ao pecado. Lança no rosto da humanidade a sua impotência e demonstra o esplendor da sua glória, que só pode ser alcançada por fé obediente. Jesus não é um folião da festa da promiscuidade. O Jesus que é aplaudido e reverenciado pela mídia, por carnavalescos e pela sociedade, de maneira geral, naturalmente não pode ser o mesmo Jesus que provocou a hostilidade da sociedade de sua época, fazendo, inclusive, com que os seus discípulos fossem perseguido por causa do seu nome e dos nobres ideais de pureza espiritual do grupo. Um é o verdadeiro Jesus, o outro, apenas um Jesus genérico que busca usurpar o lugar daquele. Enquanto o verdadeiro Jesus leva a sociedade a preferir a soltura de um ladrão, o genérico agrada a multidão. Mas a pergunta que não quer calar é: como uma escola de samba, que não tem qualquer relação com a fé cristã, pretende apresentar a Jesus Cristo? Não estaria ela, como hoje virou moda dizer, tomando o “lugar de fala” de instituições que são, de fato, cristãs? Seria isso a tal “profecia externa” de Leonardo Boff (o militante político que se disfarçou de sacerdote por um tempo)? Não obstante, como pode, dentro da lógica do lugar de fala, “pessoas e grupos, como, por exemplo, movimentos sociais, em princípio, não religiosos” reivindicar “com mais coragem do que os que se dizem seguidores ou seguidoras de Jesus” os ideais do próprio Senhor? É verdade que Jesus, e antes dele, os profetas, denunciaram os abusos de suas respectivas épocas. Denunciaram a injustiça. Mas nunca precisaram relativizar valores ou distorcer as doutrinas reveladas na Palavra de Deus. E enquanto a narrativa progressista de cristãos à esquerda busca apresentar os crentes tradicionais - católicos e protestantes - como inimigos do progresso e do bem-estar social, responsáveis pelos males que existem na sociedade, estes cristãos conservadores poderão mostrar com alguma satisfação os serviços prestados à humanidade no decorrer dos séculos: hospitais, asilos, escolas e universidades. Foram cristãos conservadores que lutaram em favor da proibição do infanticídio, do abandono de crianças e do aborto no Império Romano (374); da proibição de combates cruéis que só terminavam com a morte de um dos lutadores (404); do fim da penalidade de marcar o criminoso com ferro em brasa no rosto (315); da reforma das prisões e a separação de prisioneiros do sexo masculino e feminino (361); do fim da prática de sacrifícios humanos em diversas nações; da criação de leis contra a pedofilia; da concessão do direito de propriedade e outras proteções às mulheres; do banimento da poligamia (que ainda é praticada em alguns países muçulmanos); da proibição do ato de queimar viúvas na Índia (1829); da proibição da prática dolorosa e deformadora de amarrar os pés das meninas na China (1912); da iniciativa de um sistema de escolas públicas na Alemanha (século 16); da proposta do ensino obrigatório para todas as crianças na Europa. Isso tudo foi feito sem a bandeira ideológica que está por detrás de Boff, Gegê e outros progressistas. Pelo contrário, são os “cristãos” progressistas, em sua esmagadora maioria, que querem jogar no lixo algumas dessas conquistas humanitárias, ao, por exemplo, defenderem o direito ao aborto – uma espécie de sacrifício no altar de Moloque! A acusação do padre é gravíssima: os mais conservadores são vistos como cristãos que proclamam um Jesus “insensível ante a dor dos pobres e segregados de toda sorte”. Um grupo formado por indígenas, negros, mulheres, gays, terreiros, etc. Dois grupos dentre os mencionados por Gegê, porém, parecem fazê-lo atirar em seu próprio pé: mulheres negras são maioria entre evangélicos, em especial dentro do pentecostalismo e neopentecostalismo, segmentos extremamente conservadores, conforme pesquisa Datafolha feita no início de dezembro. Difícil é imaginar como as mulheres e os negros podem ser menosprezados por um grupo específico em que formam a maioria. Na onda das sandices faladas pelo padre, surge a narrativa que se quer impor como verdade: “O último pleito eleitoral revelou setores cristãos (católicos e evangélicos)* despudoradamente aliados à grupos políticos promotores da violência e da matança dos pobres e indefesos. De forma explícita e velada grupos cristãos se apresentaram como coniventes dos esquadrões da morte”. Primeiramente, convém esclarecer que quem se aproxima de grupos políticos promotores da morte são os grupos cristãos progressistas aliados aos partidos de esquerda. O próprio Leonardo Boff, citado com aprovação pelo padre Gegê, é um militante petista, partido que sob a liderança do ex-presidente, condenado pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro, manteve relações vergonhosamente íntimas com ditadores como Fidel Castro (Cuba), Hugo Chávez (Venezuela), Nicolás Maduro (Venezuela), Robert Mugabe (Zimbáue), Teodoro Obiang (Guiné Equatorial), Muammar Kadafi (Líbia), Nursultan Nazarbaiev (Casaquistão), Mahmoud Ahmadinejad (Irã), para citar apenas alguns. Quanto aos “despudorados” apoiadores de Bolsonaro, estes podem comemorar as benesses sociais que são frutos do atual governo: assassinatos de trans e travestis caíram 24,5% em 2019; no primeiro semestre de 2019, a queda nos homicídios e nos estupros, em relação ao ano anterior foi de, respectivamente, 22% e 12%. A queda no número de assaltos a carro tem mexido até mesmo no preço de seguros. Isso sem contar o maior programa social do governo até agora: a geração de empregos tem o melhor desempenho dos seis últimos anos – beneficiando diretamente índios, mulheres, negros, gays e quaisquer outras minorias, além de brancos e héteros, é claro. Assim, o samba da Mangueira não é uma “provocação às igrejas cristãs amordaçadas neste momento dramático e trágico na história do Brasil”. Em primeiro lugar, porque tais igrejas não estão amordaçadas; em segundo lugar, porque o momento dramático e trágico já passou, quando o governo do PT levou 14 milhões de famílias ao drama do desemprego! Assim como a Estação Primeira de Mangueira, o padre Gegê também colocou a religião a serviço de sua posição política, mas permanece que, para ambos, o Evangelho é apenas um pretexto. E o Jesus que entrará na avenida é apenas uma cópia mal feita do Senhor de todas as coisas... * Uma evidente referência a católicos conservadores e neopentecostais.
** Texto publicado originalmente em 27 de janeiro de 2020, na página do autor (facebook).